(O objectivo desta crónica é partilhar experiências caricatas usando a liberdade literária para resguardar os intervenientes no caso, com base no respeito e na confidencialidade médico-paciente)
Ora cá estou eu de novo entusiasmado como um puto depois das 12 badaladas em véspera de Natal (digo antes porque com a crise que aí vai de certeza que vai atirar com a bandeja das rabanadas à testa do Pai Natal quando vir o que este lhe traz depois de semanas a fazer de anjinho papudo) finalmente a usufruir do canudo obtido com sangue suor e lágrimas, agora já homologado, reconhecido, etc,etc,... morto por começar a colar vinhetas (bem nem tanto porque cada folha de 48 são 0,75€)
Pois como não podia deixar de ser, em plena fase de hiperactividade prestes a espalhar-me ao comprido no exame de acesso ao Internato Médico 2010 - A, estou em pleno período de implementação no Serviço de Urgência de um Hosp que quanto mais não seja tem um nome com 1,2,3,4,5,6,... 7 siglas separadas por um hífen, sem contar com os "de's"e portanto quanto a outra coisa não sei mas que tem nome pomposo tem!
Hoje último dia de integração, mais uma peripécia curiosa... descobri que quando preciso de chamar um médico, Ei! eu SOU médico!
Já mais que habituado a isso de atender laranjas nas urgências que o vigário a rezar o terço no mês de Maio, pelo constante "push and shove" dos meus colegas séniores que, preocupados com a minha formação só pegam um laranja se ele ameaçar escrever ou algo parecido (ok! tou a exagerar, mas talvez só um pouquinho), preparo-me para mais uma dispneia súbita no adulto.
Leio o que interessa no relatório da triagem de Manchester ou seja nada ao quadrado, e mando todo contente entrar o senhor A., mas como ele não vinha fui buscá-lo à sala de espera dos laranjas (até aqui os laranjas são pessoas em estado crítico agora imaginem na política)
Conversa que segue:
- Bom dia Sr A.! Então porque vem hoje ao SU?
-...
-BOM DIA Sr A., consegue ouvir-me?
-...
-BOM DIA Sr A., consegue ouvir-me? (agora com os nós dos dedos sobre o esterno que é coisa que aleija mas que acorda um morto! E na ausência de coisa maior é meio caminho andado para ressuscitar desde alcoólicos a preguiçosos [desenganem-se os puristas da medicina eu sei que integra a avaliação do estado de consciência de um doente e que corresponde a resposta a estímulo doloroso mas serve quase de igual modo para acordar aqueles mais resistentes])
Depois de me arregalar os olhos, noto que não fala, pergunto à acompanhante se era costume não responder e ela diz que desde hoje de manhã que ele deixou de falar,... MAU!
-Sr A. aperte-me os dedos! (nada) Compreende o que lhe digo? Aperte-me as mãos! (leve aperto do lado direito) -> MAU
Interrogo a senhora sobre déficits neurológicos em Mb Sup Dto, que disse responde que sim, teve um AVC recentemente e saiu do Hospital quase sem sequelas, mas que aquilo não era o estado habitual -> Mau, mau Maria!
Saltamos o relambório de história clínica e passemos ao EF que isto tem pinta de ser preciso um médico A SÉRIO! Sensibilidade e força asimétricos (hemiplegia à direita), sinal de Babinski + -> Fo**-** este tipo 'tá a ter um AVC!!! CHAMEM UM MÉDICO!!!
Help!!!(isto é para ser lido como nos desenhos animados em que o cartoon quase sussurra em desespero)
Tentando não entrar em hiperventilação e relembrar-me que agora o burro (médico) sou eu! (parafraseando o Scolari, cá está não faço só referências a escritores mas também a grandes vultos das entrevistas futebolísticas que mesmo sem ter noção de comédia, dão um show que mete qualquer humorista de trazer por casa num bolso). Ora o que é que eu faço, o que é que eu faço? E apesar da primeira resposta ser sempre Chama um médico! Condensei os 6 anos de queimar pestanas, alguns estágios produtivos e bem orientados, espremi tudo bem espremido e no final... NADA!
Até que se fez luz!
TAC...
...e o primeiro impulso seria correr pelos corredores fora com a cabeça andar à roda e a gritar Azul!, mas acho que resisti para o bem do meu futuro, respeito dos colegas e integridade profissional
Este tipo tem que fazer um TAC, e já tudo veio por acréscimo... análises a pedir, medicação a tomar, afinal estava lá, mas mais ou menos escondida. Valeu-me a Dra incumbida de me fazer babysitting nestes primeiros voos a solo confirmar o que eu tinha que fazer, mandamos o Sr. para o TAC,medicamos, pedimos análises, ECG e passamos a recolher a história verdadeira a partir da acompanhante. bláblá, hj aconteceu assim e tal e o camandro,...que eles ate disseram que não sei quê. A minha "nanny" tratou de chamar a neurologia, que quando lhe disse que tinha um AVC nas mãos:
- Nas mãos? Mas isso é na cabeça!
- Não sou eu é o doente!
- Nem nas suas nem nas do doente.
- Não tenho um doente que não tem nada nas mãos, eu é que o tenho nas mãos e ele é que tem um AVC
-Ah! Podia ter dito logo que tinha um AVC em mãos...
Calinadas no português à parte, o certo é que a páginas tantas até a enfermeira da triagem estava metida ao barulho, porque eles vieram e não disseram, e eu que sou pessoa para isso e muito mais até lhes disse que pronto e não sei quê... laranja! E depois nós tínhamos ido lá na base do ai e tal e o camandro! E ela que não era pessoa de deixar as coisas assim reclama que ai e tal não!Depois desta conversa de besugos soubemos novas do paciente que infelizmente não davam muito para eufemizar, mas que passavam pelo internamento que é uma senão a mais importante pergunta que se faz um médico da triagem,das mais: é para internar (a última palavra pertence ao internista, mas compete ao triador (?) selecionar os casos que pareçam convenientes ponderar internamento) ou pode medicar aqui e dar alta para Cons Ext/Med Fam/exterior não vigiado?
Certo é que prognóstico ominoso à parte, num quadro clinico&antecedentes que de si nada tinha de bom sinal, duas lições tirei daqui: no more lap priveleges!, from now on I'm a doctor for all that matters so man up & step up, e dadas as circunstâncias até me safei bem; no tto após um AVC isquémico nunca se deve combinar HBPM e antiagregantes plaquetários pois aumentam a incidência de transformação hemorrágica do território previamente isquémico, é aconselhável sim HBPM, mas em doses profiláticas (que foi coisa que se comentou, mas eu procurarei o estudo e ponho-o aqui)
No final de contas sobrevivi para marrar mais um dia, para que cada vez menos tempo exista entre o "CHAMEM UM MÉDICO" chamem um médico e o "eu até sei o que fazer"
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