Fisiopatologia do colapso da Saúde
De forma totalmente imprevista (espero que se consiga saborear o sarcasmo que esta palavra carrega) o mês de Janeiro começa com notícias (+/-) falaciosas mas que espelham a insuficiência do maltratado SNS.

Paciente amontoados em corredores que lembram uma qualquer "Green Mile" dos estabelecimentos prisionais do Texas (sim tinha que fazer uma referência ao Faroeste porque não andamos muito longe), história de pessoas que esperam éons e morrem à espera na triagem ou criaturas que por mais que tentem não conseguem consulta com o médico de família porque das duas três ou está de férias ou reformou-se ou está de licença de parto (as desculpas mais populares quando dos que conseguem chegar à triagem conscientes).


 e.....

 Ora bem vamos lá ver porque cargas de água colapsam os serviços hospitalares de urgência?

O mediático atulhar de pacientes nos corredores das urgências deve-se a um acúmulo de decisões a praticamente todos os níveis do sistema nacional de saúde que não deixa ninguém ileso.

À cabeça um serviço que trabalha no limite das suas capacidades 275 dias por ano (para os que não sabem o Inverno tem 89-90 dias) é normal que transborde por qualquer incremento do número de pessoas a que ele recorre agravado por uma lotação finita nos departamentos que recebem os que efectivamente necessitam de ser hospitalizados.

 Quanto ao aumento da procura podemos identificar vários factores:

(Ponto 1) É Natal
Por um lado, depois da paralização natalícia (porque sim, nesta época de solstício exceptuando alguns redutos [tipo o Serviço de Medicina - CHAA em que os médicos estão impedidos de tirar férias], os centros de saúde, as consultas externas e até mesmo as clínicas privadas, diminuem a produção) e se durante o ano CS já não têm vagas para os utentes em visitas esporádicas, em pleno clímax da epidemia gripal a melhor resposta deste é com sorte uma visita programada 1 semana depois do início dos sintomas. Sinto muito, mas uma Unidade de Saúde Primária que não consiga observar em Primeira Instância em tempo útil deixa de o ser para passar a ser uma unidade de gestão do doente crónico estável ou do "doente" sem patologia. E o pior disto tudo é que neste caso os pacientes crónicos que desestabilizam pela chegada do frio, níveis de contaminação elevada e as múltiplas infecções respiratórias complicadas, que já fazem tão parte desta quadra como as rabanadas, têm que ir procurar ajuda noutro sítio!
Sim estes são os donos da BES (desculpem) NBSaúde, Trofa Saúde e Grupo Mello

(Ponto 2) Burocracia
Por outro lado se bem que me canso de repetir paciente sim, paciente também que há 5 motivos para não procurar um médico É GRIPE, há um que obriga a todo Cristo e o seu gato vir à Urgência. 

As barreiras burocráticas existem para regular os excessos, check! 

Mas em todo o estado de direito (mediterrânico), mais cedo ou mais tarde acabam por ser inutilmente excessivas ou astuciosamente laxas.O que me preocupa é ninguém pensar que efectivamente em períodos de crise ou aumento de afluência não haja uma flexibilização destes muros com repercussões nefastas para todos os níveis de assistência sanitária mas particularmente chatas nas urgências que deviam ser altamente selectivas. 

(Ponto 3) Poluição
A poluição, que o cidadão pedestre luta para entender no meio da confusão do é grave, não é e que os políticos se esforçam por esquecer porque pertence a uma pasta que só serve para enterrar dinheiro, favorece a reagudização de processos respiratorios e cardiovasculares e não é só a longo prazo! 

A sério, não é só o activista do Greenpeace em mim a falar, leiam as conclusões deste estudo de 2010 do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA). No entanto o povo quase se espuma da boca quando proíbem carros dignos de museu nos centros ou se se aconselha uso de transportes públicos e o Estado não entende que o dinheiro que não arrecada nos títulos de viagem e nas infraestruturas de um sistema de transportes inteligentes poupa em gastos astronómicos de internamentos de DPOC's agudizadas e afins... Sim filhotes, está tudo interligado... 

A paz, o pão habitação saúde, educação 
 Só há liberdade a sério quando houver 
Liberdade (e coragem) de mudar e decidir (com cabeça tronco e membros) 
(Alguém se lembra desta música?)

(Ponto 4) O frio
Eu não sei mas quando eu andava na escola falava-se que o INVERNO...

É FRIO! 

E mais tarde depois de muito ouvir dizer a minha avô que apanhar frio dava em pneumonia, razão pela qual muitas vezes andei encasacado até aos olhos, aprendi (já na faculdade) que o frio é factor de risco para agudização de algumas doenças crónicas, afectando especialmente as idades extremas 

Para quem não sabe o que é "pobreza energética" que se sinta muito pequenino quando reparar que até já existe um organismo europeu dedicado à coisa -EU Fuel Poverty Network- e definem-na como a incapacidade para custear os níveis básicos de energia para o adequado aquecimento, confecção de alimentos, iluminação e uso de electrodomésticos básicos. Mais curioso é a percentagem de lares que configuram este quadro sendo o seguinte quadro autoexplicativo 

 E isto são dados do Reino Unido, imaginem o caso português. 

 Pois é... 

Não é preciso ser dotado em SPSS, em Bioestatística ou mesmo Matemática teorética/aplicada para relacionar o aumento da taxa de mortalidade no Inverno país com a "pobreza energética" deste rectângulo à beira mar plantado. Mas descanse o comum mortal que não possui estes skills essa relação já foi feita... não em Portugal porque aqui não se faz nada que possa piorar os números que tão primorosamente embelezamos para Sra. Europa. 

Para quem se dá ao trabalho no pubMed se escreveres "fuel poverty" encontras 30 artigos, 12 dos quais nos últimos 5 anos, o que alerta para a relevância actual do tema. O que nos dizem esses artigos? 
  • Versão TVI (extracto verbatim Harrington BE, Heyman B, Merleau-Ponty N, Stockton H, Ritchie N and Heyman A (2005) Keeping warm and staying well: findings from the qualitative arm of the Warm Homes Project. Health and Social Care in the Community, 13(3), pp.259–267)
    Entrevistador: Passa frio na sua própria casa, que efeito tem esse facto na sua vida em geral?
    Entrevistado: Terrível. Algumas vezes deitámo-nos às 19h e quem vem visitar-nos com frequência, sabe que não faz sentido vir depois dessa hora porque sabe onde vamos estar. O melhor para nos é subir as escadas e metermo-nos na cama debaixo das mantas para nos mantermos quentes.
    (engane-se quem pense que estamos a falar duns jovens de 80 anos, trata-se de um casal de meia idade!) 
  • Versão científica (De Vries. Fuel poverty and the health of older people: the role of climate. J Public Health. 2013. (link)
    Neste texto em concreto tratarão de procurar se as alterações climáticas em Inglaterra podiam explicar 1) as variações na taxa de pobreza energética e 2) a variabilidade entre o efeito provocado pela pobreza energética e os resultados em saúde.

    Apesar das limitações do estudo o clima não parece ser um factor associado a estas alterações, no entanto a pobreza energética relacionava-se de forma significativa com as patologias do foro respiratorio e com o desenvolvimento de depressão 
  • a título de curiosidade um outro estudo que se debruçava sobre o efeito de acções de sensibilização para optimização de custos energéticos conclui que os consumidores com baixo rendimento parecem ter uma considerável apatia em relação à mudança de tarifas energéticas, apesar das potenciais poupanças e benefícios em termos de saúde; em parte devido ao facto de terem umas vidas complicadas nas quais a mudança de tarifa energética não é uma prioridade. Uma intervenção independente, personalizada, "um a um" conseguiu promover a mudança, especialmente nas famílias mais jovens. No entanto, as pessoas de maior idade ainda experimentam dificuldades para mudar de tarifa pelo que necesitariam de intervenções específicas que tenham em conta a sua resistência à mudança e os seus hábitos de uso energético e cepticismo. 
  • Versão em primeira pessoa (eu VMERdico [se fosse entrevistado para a TVI] ou então esta tarde a "discutir" com o INEMeiro que me estava a aturar hoje)
    «É impressionante a quantidade de pessoas que a menos de 6km do centro do Porto vivem em casas sem nenhum tipo de suporte energético para manter uma temperatura habitável em casas que nem classificação alfabética tem no certificado energético»
 Portanto ao frio que se sente nas ruas é preciso acrescentar o frio sentido nas casas daqueles que não têm dinheiro para ligar o aquecimento central ou para pagar a factura da luz/gás. 


E no que concerna à dificuldade logística para dar saída aos paciente que precisa de ser internados no Hospital? 

Pois mas não dá jeito... não há mais remédio senão dar altas precoces com os resultados à vista (estranhamente os reinternamentos não entra nas contas dos controlos de qualidade), e mesmo que se abra todas as vagas não há pessoal para atendê-las e não não estou a falar só de médicos! 

É preciso enfermeiros, é preciso auxiliares,... 

ou pelo menos uma gestão inteligente dos recursos que já temos... 'pera lá

e se, sabendo que nestas épocas os serviços de Ortopedia, ORL, Urologia, Oftalmologia, Ginecologia podem funcionar a meio gás uma vez que internam essencialmente procedimentos em diferido fossem restruturados para receber as hordas de doentes que encharcam a capacidade do Hospital?

Não é que isso não seja feito já, não há interno de Medicina que não passe a manhã no elevador (ou na versão health freak nas escadas) a visitar doentes por todo o Hospital. 
Mas por ser feito encima do joelho nem os profissionais que recebem os doentes (enfermeiros de Medicina é diferente de enfermeiro de ORL que é diferente de enfermeiro da UCI) nem as especialidades que recebem doentes tem espaço para o "business as usual" deixando qualquer Chefe de Equipa do SU a braços com a hercúlea tarefa de decidir onde meter tanta gente e supostamente o Chefe de Equipa é muito mais que isso. 

Como resultado disto e do facto do SNS se encontrar à beira do abismo da insustentabilidade, empurrado por Orçamentos de Estado autistas e completamente desligados da realidade, alavancados pela ganância do lobby privado mais o descontentamento que grassa nos profissionais de saúde que em vez de trabalharem para um objectivo trabalham para manter o nível de vida, o colapso não é de estranhar nem muito menos que seja maior a cada ano que passa porque não há soluções cabais que frenem o deterioro com matizes cumulativos. 

E sai um martelado qualquer na televisão nacional a dizer "ainda esta semana contratamos mais 1500 médicos". 

E a estupidagem deste país come e não pensa que esta frase é falaciosa por tudo o que foi dito anteriormente mais o facto de dito martelado se estar a referir aos médicos INTERNOS de Ano Comum e Formação específica que vieram parar ao Hospital em pleno pandemónio! 

Repito 

O pessoal que trabalha(mos) na Urgência nesta altura do ano faz um esforço titânico para atender nas melhores condições possíveis a avalanche de doentes que tem que atender mas a capacidade de ditos serviços JÁ SE ENCONTRA NO LIMITE. 

Limitar os planos de gestão dos períodos de maior afluência à contratação de pessoal de urgência e em concreto apenas a médicos dá ideia de que a única coisa que preocupa às administrações são os títulos mediáticos do estilo "Doente morre na sala de espera antes de ser visto pela triagem médica", esquecem-se que imediatamente os Media que sabem farejar notícias sumarentas a quilómetros rapidamente vendem títulos do estilo "Doente morre no corredor por não ter vaga monitorizada" ou "Valor/hora de médicos do Amadora-Sintra bate novos recordes". O primeiro aparecerá nos jornais da oposição e o segundo nos do Governo que tenta demonizar uma das classes de profissionais que participam na Urgência. 

Para saúde dos paciente, do SNS e dos próprios profissionais submetidos a uma pressão assistencial brutal durante esta época do ano as medidas de gestão dos picos de afluência devem ser pensadas em Dezembro por avaliação do estado, resolvidas em Dezembro e postas em práticas até ao próximo Dezembro para avaliar de novo, abrangendo os Ministérios da Saúde, da Economia, das Finanças, da Segurança Social, que de uma forma ou de outra são os realizadores desta triste tragicomédia a que assistimos todos os anos. 

Não se pode deitar a culpa só aos vírus HxNy, especialmente se a época da Gripe a sério ainda nem começou. Tão importante é tomar as medidas certas como fazer um diagnóstico correcto da situação, porque acreditar que estamos a passar o pior da epidemia gripal 2014-2015, é completamente ridículo conforme qualquer epidemiologista poderá corroborar. 


Algumas coisas custa dinheiro para fazê-las e ter um sistema de saúde no qual os recursos profissionais e materiais não estão constantemente a 200% da sua capacidade é uma delas - apesar de haver questões de funcionamento que se podem e devem fazer sem custo extra de recursos económicos, mas ninguém fala disso - mas é certo que é enormemente superior o gasto em manter pelas pontas um sistema que já foi de excelência tendo em conta as condições históricas do país, já para não falar de lamentável e altamente desmoralizador graças a (nós) trabalhadores com a língua de fora, mão estendida e de costas para os doentes e para os chefes.

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